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O rio e a lama


Numa clareira, nos arredores de um pequeno povoado, podia-se ver sempre, um pescador, como se ele fizesse parte da paisagem.
O pescador levantava-se antes do Sol e caminhava para a clareira com a alegria de um passarinho. Chegava com a manhã para pescar num rio muito fundo à beira de um bosque e ficava ali até o Sol lhe dar boa noite.
Um dia, porém, o pescador percebeu que o rio estava cheio de lama. A quantidade de lama que se acumulou no fundo do rio, através dos anos, estava tão alta que mal dava para ver uma estreita lâmina de água limpa. A pesca estava ficando cada vez mais difícil. Só de tempos em tempos aparecia um peixinho para se arriscar à luz do Sol.
O pescador pensou muitas vezes em mudar a cara das coisas que vinham acontecendo. Tinha sentido uma vontade enorme de fazer alguma coisa mas não sabia direito o quê.
Nesse mesmo dia, o pescador ficou muito chateado porque não conseguiu pescar peixe nenhum. Estava caminhando, perdido em seus pensamentos, quando achou um cajado bem próximo às margens do rio e, em meio à sua irritação, começou a remexer furiosamente a lama do rio. A lama imediatamente se espalhou. Em rodamoinhos, foi escurecendo toda a água. O pescador, assustado, começou a pensar, consigo mesmo, como tinha sido insensato. Por que foi mexer na lama? Agora não podia ver mais nem a fina lâmina de água nem os peixinhos para pescar. Sofreu muito diante da sua insensibilidade. Sentiu uma grande culpa pelo mal que causou ao rio e a si mesmo para a pescaria do dia. Sentou-se às margens do rio. Abaixou a cabeça e, colocando-a entre as mãos, ficou quieto e triste.
Mas o rio continuou a correr, indiferente às lamúrias do pescador. Com o tempo, foi carregando a lama que estava espalhada pela água. Alguma viajava para longe dali, enquanto outra parte ia se assentando no fundo do leito do rio.
Depois de algum tempo, o pescador olhou para o rio. Ficou surpreso quando viu que as águas turvas haviam passado. O rio mostrava de novo uma lâmina de água limpa. E agora, maior do que antes. Ficou muito feliz e, mais tranqüilo, pôde pescar.
No dia seguinte voltou brigado com o rio. Primeiro porque a pesca da véspera foi muito fraca; segundo porque a lembrança da lama misturada com as águas do rio o haviam transtornado. Olhou para a lâmina d'água limpa e não viu peixe nenhum. Pegou então o cajado e, mais uma vez, revolveu o rio, e a lama.
Ao ver a lama novamente tomar conta de toda a água, sentiu outra vez uma culpa imensa. Sentou-se triste à beira-rio mas, desta vez, lembrando o dia anterior, plantou um rabo de olho no rio e deixou que uma ponta de esperança varresse o seu coração. Ficou ansioso, por algum tempo, esperando que a quietude voltasse ao rio e, com ela, a sua tranqüilidade. Era tanta a sua pressa que parecia que o rio não queria responder a tempo à sua expectativa. Deixou a esperança ir embora. Voltou ao fundo da sua tristeza.
O rio, porém, continuou a cumprir a sua natureza e correu livre pelo leito, ora carregando a lama, ora deitando parte dela no fundo de si mesmo.
Quando o pescador se cansou da tristeza, levantou a cabeça e olhou o rio. Ele estava calmo, como no dia anterior, com uma lâmina d'água limpa maior ainda e com mais alguns peixinhos visíveis aos olhos. Pegou a sua vara e foi pescar.
A partir desse dia, o pescador passou a dar sempre uma mexida na lama do rio, antes de cada pescaria e o rio começou a clarear.
Numa dessas revolvidas na lama, o cajado se chocou com alguma coisa. Era alguma coisa grande e pesada. O pescador se assustou. Tirou o cajado imediatamente do rio. Ficou receoso da pesca mas, ao ver o rio voltando à calma, acalmou-se também e continuou a pescar, mesmo estando preocupado com o acontecimento.
No dia seguinte, com muito cuidado, o pescador enfiou o cajado na lama e a revolveu. Nada encontrou. Na sua segunda tentativa, porém, o cajado voltou a se chocar com algo grande e pesado como uma pedra. O pescador não sabia se continuava ou parava. Como a água estava turva, resolveu esperar até que a lama se assentasse para ver se continuava ou não com a sua investida.
Depois de algum tempo, pode perceber que surgia da lama um pedaço de madeira rachada mas, como já era tarde e ele precisava levar algum peixe para o jantar, decidiu-se por tratar da pesca do dia.
Ao voltar para casa, dormiu um tanto ressabiado. Na verdade, é claro que devia haver muitas coisas no fundo daquele rio, como em todos os rios que ele conhecia, mas, só a partir daquele momento, ele pudera perceber como ficara nervoso e ansioso por causa de um simples pedaço de madeira.
De manhãzinha, correu para o rio, pegou o cajado e, como uma criança, começou a bater na água muitas e muitas vezes. Brincou muito até que lhe deu uma vontade feroz de revolver a lama com o cajado. O pescador então, com muita raiva, enfiou o cajado no rio e mexeu o mais forte que pôde na lama do rio. Só parou quando se sentiu cansado. Estava exausto. Foi preparar a sua vara de pescar, seu anzol e sua isca, enquanto o rio corria e, com ele, a lama.
Quando voltou a olhar o rio viu, no lugar da tora de madeira da véspera, um pedaço de embarcação que saia da lama. Estava rachada, coberta de limo, com ostras encravadas no seu casco. A embarcação já fazia parte do fundo do rio.
O pescador parou um tempo para pensar. Ele nunca havia imaginado nada diferente da lama naquele lugar. Pensou em usar de novo o cajado, mas estava cansado. A hora ia adiantada e ele lembrou que precisava de pelo menos um dia para revolver tanta lama e ter que esperar o rio fazer a sua parte.
Em casa, de noite, brotou na sua cabeça a idéia de passar uma draga no rio. Ficou matutando noite adentro.
Voltou ao rio no dia seguinte com essa idéia ainda rolando nos seus pensamentos. Imaginava como o rio ficaria, limpinho. Como seria mais rápido e tranquilizador acabar com toda a sujeira do rio, poder viver mais inteiramente a pureza do rio. Mas alguma coisa lhe doía por dentro ao pensar dessa maneira e a idéia foi-se estragando dentro dele e ele continuou a trabalhar com o cajado na sua faina diária.
Passados alguns dias, apareceram, além da embarcação, que já estava quase toda à mostra, muitas espécies de peixes que ele não conhecia de rio nenhum. Surgiram vários tipos de vegetação, algumas das quais extremamente diferentes e belas.
Nesse momento ele pôde compreender um pouco melhor a dor que sentiu quando pensava em dragar o rio e descobriu que nem sempre se resolvem as coisas devastando o que está no meio do caminho.
A essa altura, a lama já era quase um filete. Em alguns lugares ela até já não existia mais e ele, então, começou a entrar devagarinho no rio. Aprendeu aos poucos a retirar do rio as quinquilharias. Elas eram muitas: gravetos, cacos de vidro, brinquedos escangalhados, pontas de anzol, pedras de todos os tipos. Algumas dessa pedras eram tão bonitas que ele as aproveitou para enfeitar o seu quarto.
Cada dia ele aprendia uma coisa nova com o rio. Cada dia para ele se tornava uma felicidade maior voltar ao seu rio e limpar o seu lixo. Já pescava mais do que o suficiente para o seu sustento. Já podia trocar no mercado alguns peixes que sobravam por pequenos objetos que passavam a dar outra vida à sua casa, que davam outra dimensão à sua vida.
Numa das idas ao mercado, onde ele trocava seu peixe por mil e uma coisas, ele tomou um atalho. Passou por uma pequena clareira. Nas suas margens, um pescador, triste e pensativo, contemplava a lama que o impedia de ver o fundo do rio, tão desejado.
Os olhos do velho pescador se iluminaram mas, imediatamente, voltaram à quietude. Parou por instantes diante da cena, viveu-a na sua infinita grandeza, para finalmente se movimentar.
Chegou-se então ao pescador, tocou-lhe no ombro, viu-o olhá-lo profundamente nos olhos com uma pergunta que varara os seus. Pegou o seu velho cajado e, sem nenhuma palavra, entregou-o ao solitário pescador. Deu-lhe um sorriso, fez-lhe um pequeno afago no ombro com a mão e, em seguida, virou-se para a estrada e continuou o seu caminho.


Autoria desconhecida

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